Mais importante que votar SIM ou NÃO: “Desarmamento” e Violência de Classe

Por Maurício Campos 10/10/2005 às 09:45
Uma vez mais, um processo eleitoral oficial (no caso um referendo) conduz a sociedade a olhar um problema grave e complexo (a criminalidade e a violência social) como se fosse uma simples prova de múltipla escolha. Contradições sociais, concepções ideológicas, interesses de classes e disputas de poder são camufladas e postas em segundo plano em favor de uma trivial escolha binária: SIM ou NÃO. Você decide?
Que o sistema “democrático” oficial proceda assim não é surpresa: afinal, sua função não é permitir verdadeiras “decisões” populares, e sim fornecer um arremedo ilusório de “participação” para os setores oprimidos, desprovidos de poder (quando estão desorganizados). O que mais uma vez causa mal-estar (não diria surpresa) é que a própria “esquerda” embarca, em sua maioria, nessa canoa furada, promove debates e gasta laudas com o objetivo de produzir ou informar uma “opção”: devo votar SIM ou NÃO? O que poderia ser uma importante reflexão sobre a violência institucionalizada (o Estado como concentrador da violência da classe dominante), o caos social do capitalismo tardio, e as alternativas de poder popular no campo da segurança e paz coletivas, fica reduzido a uma mesquinha disputa de argumentos circunstanciais e parciais para no dia da eleição se digitar um “1” ou um “2”. Mas, para nossa sorte, o tema por trás do referendo é tão complexo e ligado a questões sociais tão decisivas, que o vazio do processo eleitoral-institucional desta vez salta aos olhos e leva a resultados desconcertantes. Em vão alguém vai conseguir distinguir “campos” de classe nítidos entre os defensores do SIM ou do NÃO. Os grupos de raciocínio mais dogmático em vão tentarão demonstrar que o “interesse da burguesia” aponta no sentido de uma ou outra opção. Direita, esquerda, “centro”, religiões, lobbies empresariais e intelectuais distribuem-se aleatoriamente e sem “lógica” aparente entre as duas opções disponíveis. Nesse resultado “maluco” não se estará cumprindo, no fundo, um dos objetivos do referendo? Não se terá “demonstrado” assim que a “democracia” é realmente universal e está acima das classes e contradições sociais? Acho que é questão de tempo aparecer algum “filósofo” burguês para dizer: o referendo mostrou mais uma vez que o conceito marxista de classes e luta de classes é antiquado e ultrapassado, o que existe é a “sociedade” como a soma de “indivíduos” portadores de uma mesma “cidadania”, onde cada um faz opções movido por sua consciência pessoal, blá, blá, blá,... Mas, acho que mesmo essa mistificação não vai ter muito sucesso. Com muita freqüência tenho ouvido nos comentários do povo no dia a dia que “esse plebiscito não vai resolver nada”, “nada vai mudar”, ou, de forma mais clara, concisa e taxativa: “isso tudo é uma palhaçada”. Viva o bom-senso popular! Esperamos que ele resista ao bombardeio da mídia e aos “debates” oficiais. * * * * Mas, partindo do objeto específico do referendo (que não é, como alguns tentam mostrar, o “desarmamento” em geral, mas a proibição – ou não - do comércio privado individual de armas de fogo) e dos argumentos usuais das duas “frentes” (que afirmam – ambas – o mesmo objetivo de fortalecer a segurança coletiva e reduzir a violência), vamos tentar mostrar que há interesses ideológicos da classe opressora tanto numa opção como noutra. Enfatizo: interesses principalmente ideológicos, e secundariamente políticos e econômicos. Por isso, no caso do referendo atual, o “interesse” da classe dominante como um todo não está tanto em um ou outro resultado, mas na realização da consulta em si mesma e na concentração da reflexão e discussão da sociedade nas duas opções disponíveis, ambas dentro da lógica do controle e institucionalização da violência pelos ricos. Primeiro, a proibição. A proposta provavelmente vitoriosa daqui a alguns dias retira sua força principalmente de uma ilusória identificação com o “desarmamento” em geral, e secundariamente em alguns argumentos fundamentados sobre a letalidade das armas de fogo em casos de violência interpessoal (brigas domésticas e de trânsito, acidentes, etc), ou seja, não ligadas ao problema da criminalidade e violência social propriamente ditas. Quando trata dessas últimas, seus argumentos fracassam totalmente. Primeiramente, nunca fala da violência praticada pelo estado, dos assassinatos e execuções sumárias cometidas por “agentes da lei” (policiais no exercício de suas funções ou não). Essas não só são muito significativas estatisticamente (cerca de 40 mil mortes por arma de fogo no Brasil por ano, mais de mil mortes provocadas pela polícia por ano só no Rio de Janeiro), mas têm um impacto decisivo na violência em geral, pois significa o Estado (suposto representante do bem comum) dando o exemplo e sinalizando à população que os conflitos devem ser resolvidos à bala. Qualquer proposta de “desarmamento” no Brasil que não aborde a violência do estado, portanto, é uma mentira, uma piada, uma enganação. Mas essa enganação tem um evidente caráter de classe (e racista): a violência estatal não se distribui uniformemente pela sociedade, ela incide quase exclusivamente sobre pobres, negros e moradores da favelas e periferias. Não falar da violência estatal é dizer que a violência sobre negros e pobres não é um problema “significativo”. Confrontados com o sólido argumento de que na maior parte dos homicídios por arma de fogo são utilizadas armas ilegais, os defensores da proibição têm citado exaustivamente a cifra de que 30% das armas apreendidas com criminosos no Rio têm origem legal, ou seja, foram legalmente adquiridas e depois roubadas, desviadas, etc. Além de ser um argumento fraco de início (os 70% de armas ilegais “mesmo” são muito mais significativos), até hoje não vi um detalhamento desta estatística: esses 30% foram adquiridos legalmente por quem? Quantos o foram por indivíduos (a única parcela que sofrerá restrição pela proibição), e quantos pelo estado (polícia, forças armadas) e por empresas de segurança (para os quais a lei não muda nada)? Se a distribuição estatística seguir a da venda em geral de armas no Brasil, então a parcela de armas subtraídas de indivíduos particulares por criminosos deve ser muito pequena, pois os maiores compradores de armas no Brasil não são particulares, e sim o estado e as empresas. Incidentalmente, citei um aspecto da legislação que está indo a referendo que raramente tem sido citado nos debates: a proibição em nada afetará as empresas privadas de segurança, elas continuarão a se abastecer de armas de diversos tipos e calibres. Ora, a “segurança privada” é um dos negócios que mais crescem atualmente no Brasil; o contingente de seguranças armados já é superior ao efetivo das Forças Armadas e das polícias somados. Essa imensa fonte de multiplicação de armas nas mãos de pessoas em nada será afetada pelo tal “desarmamento”. Ou melhor, pode até estimulá-la, já que uma parte significativa da classe média, sem poder adquirir armas particularmente, começará a julgar um investimento “aceitável” a contratação de seguranças particulares para seus prédios, condomínios, etc. Aqui fica, mais uma vez, evidente o caráter de classe da proposta de proibição: segurança privada é um bem de consumo exclusivo dos ricos e de alguns setores de classe média. Meio incapazes de demonstrarem como a proibição reduzirá significativamente os índices de violência social e criminalidade, os defensores do SIM apelam finalmente para estatísticas não comparáveis de outros países (todos dos centros “desenvolvidos” do planeta). Comparam a queda de mortes por armas de fogo em países que adotaram a proibição (Grã-Bretanha, Austrália, Japão) com o alto índice de mortes em paises onde o comércio é liberado (EUA). Bem, esses dados são desde o início imprestáveis, porque não são de paises do Terceiro Mundo, com graus de desigualdades e conflitos sociais comparáveis ao do Brasil. Em determinados países “desenvolvidos” (não todos, e provavelmente nem a maioria) é bem possível que os casos de violência estritamente interpessoal ou intrapessoal (conflitos domésticos, brigas, suicídios e acidentes) sejam a parcela mais significativa de mortes por armas de fogo; em tais lugares (já bem pouco violentos, em comparação com a parte pobre e oprimida do mundo) é razoável supor que a restrição do comércio de armas tenha de fato impacto sobre o número de mortes. Mas isso não tem nada a ver com nossa realidade de desigualdade extrema, desagregação social e guerra civil permanente. Além disso, mesmo as comparações no “Primeiro Mundo” são manipuladas. A ocasião do referendo é uma boa oportunidade para quem puder ver ou rever o documentário de Michael Moore “Tiros em Columbine”. Nele, Moore faz a comparação correta: entre os EUA e outro país “desenvolvido” (se não me engano a Alemanha), onde o comércio de armas é quase tão irrestrito, mas os índices de mortes por armas de fogo são muito menores. E mostra, convincentemente, onde está a verdadeira diferença: a realidade de desigualdade, racismo egoísmo e intolerância que marca a sociedade norte-americana. Vejamos agora a segunda opção, contra a proibição. Seus argumentos são ainda mais fracassados. Sua tese central, de que o “cidadão armado” inibe a ação dos criminosos, é técnica e historicamente insustentável. A autodefesa armada individual nunca foi capaz de evitar a violência ou responder a ela, pois sofre de dois tipos de desvantagens irremediáveis: primeiro, num confronto um-a-um, a vantagem está quase sempre do lado do atacante (assaltante, assassino, polícia), devido ao elemento surpresa; segundo, quase sempre o atacante não é um indivíduo, mas um coletivo (um bando, pelotão, etc). “Ter uma arma para se defender” é uma dessas ilusões persistentes da humanidade que sobrevivem contra todas as evidências e experiências. Entretanto, a proposta da não proibição é mais coerente com a economia de mercado. A “defesa dos interesses individuais” sustentada pelos partidários do NÃO, é na verdade a defesa dos direitos do comprador. Porque permitir a produção livre de determinada mercadoria (armas) e não seu livre comércio? Claro que, para este, como para qualquer outro tipo de mercadoria, o “direito do comprador” é um direito de classe, é o direito de quem tem dinheiro para comprar. É o “salve-se quem puder”, e no capitalismo pode quem tem dinheiro. Assim, o caráter de classe da proposta do NÃO fica tão claro como o dos defensores da proibição. Os proponentes do SIM não são contra a livre produção de armas por empresas privadas (só isso já seria suficiente para desmascará-los como defensores do “desarmamento”), mas querem restringir seu comércio em nome do monopólio da violência pelo estado (isso foi explicitamente defendido por uma representante do Instituto Konrad Adenauer – Alemanha – levada pelo Viva Rio para o lançamento da “Frente Brasil Sem Armas”, que disse que, apesar de toda violência e corrupção policial, todos devem “confiar nas autoridades” como garantidoras da segurança coletiva). As empresas privadas de segurança entram como aqui? Talvez como “concessionárias” desse “serviço público”: a violência estatal? O princípio do monopólio estatal da violência não surgiu no capitalismo, na verdade é um dos pilares de qualquer tipo de estado. Os ideólogos defensores do estado como “poder público” que impede que a sociedade se desagregue numa luta de todos contra todos (Hobbes), sempre partem do dogma segundo o qual indivíduos e comunidades “naturais” são incapazes de conviver harmoniosamente e por isso devem ser privados de poder para seu próprio bem. Essa fraseologia abstrata está em total contradição com a história. Antes de se desenvolverem a sociedade de classes (ricos oprimindo pobres) não se tem conhecimento (através da antropologia e arqueologia) de nenhum povo que desapareceu consumindo-se numa luta sem regras. Ao contrário, opressão social e estado (duas coisas que sempre andaram juntas) foi que geraram todas guerras civis e genocídios conhecidos. Conclusão: as campanhas do SIM e do NÃO na realidade não conseguem apresentar nenhuma proposta convincente para redução da criminalidade e da violência social. Em última análise, seus fracos argumentos baseiam-se em duas grandes abstrações (contos de fadas ideológicos) utilizadas pela classe opressora para justificar seu domínio: o poder do mercado como regulador da vida e dos conflitos sociais; e a necessidade do estado (monopólio organizado da violência) para a sobrevivência da sociedade. São duas afirmações ideológicas de maneira nenhuma contraditórias, tanto que há países em que convivem perfeitamente um estado poderosamente armado e cheio de prisões, e o pleno direito de indivíduos (que tenham dinheiro, é óbvio) portarem armas. Os EUA são o melhor exemplo. * * * * Porém, não vou aqui simplesmente constatar que a violência e a criminalidade são geradas pela opressão social, pela desigualdade, pelo racismo, etc. Sabemos que violência social não acabará enquanto persistirem suas causas econômicas e sociais. Vivemos uma situação tal neste capitalismo tardio (quer dizer, o capitalismo que já “passou da época” de morrer) que hoje em dia até a burguesia admite isso, mas joga cinicamente com o desespero do povo diante da violência dizendo: não podemos esperar pela solução dos problemas sociais para tomar “medidas concretas” contra a violência, precisamos de soluções imediatas, etc. Não deixa de ser verdade. O genocídio a que está sendo submetido hoje o povo pobre, negro e explorado é realmente insuportável. Decerto são necessárias “medidas imediatas”. O que tentarei mostrar a seguir é que as únicas medidas “imediatas” cabíveis são aquelas que levam diretamente à luta total contra a opressão e pela libertação social. À luta pela revolução, como se dizia antigamente... Podemos escolher vários pontos de partida, mas vamos começar pelo tão falado “desarmamento”. Numa lógica direta, se eliminarmos todas as armas de fogo, não haverá mais mortes por armas de fogo. Então façamos a coisa direito: 1) proibir a fabricação de armas; 2) desarmar quem está armado, prioritariamente aqueles que são as maiores fontes de violência, na ordem: o estado, os criminosos, os indivíduos armados não criminosos. Tanto os defensores do SIM como do NÃO irão sorrir e dizer: que disparate! Desarmar o estado! Acabar com a polícia! Quem irá nos defender? Com certeza não será o Chapolim Colorado... Um intelectual mais ponderado dirá: existem na sociedade indivíduos desajustados, de conduta anti-social, que se organizarão, formarão bandos, e aproveitarão o desarme geral para se armarem e imporem seu roubo e saque permanente ao conjunto social. Sim, é verdade. Aliás, essa é uma descrição bem precisa do processo de formação do estado e da classe dominante. Países como o Brasil fornecem a demonstração prática do caráter de classe do estado, e de sua parte repressiva (polícia, forças armadas) em especial. Aqui, onde a desigualdade extrema e o egoísmo sem limites da classe opressora levam a um estado de guerra civil permanente, o estado perde qualquer aparência de “neutralidade” e se revela como de fato é: um instrumento corrupto e violento de manutenção de privilégios de uma minoria. É pura ilusão pensar que qualquer corpo profissional de homens armados, separados por disciplina e estrutura militar do resto da sociedade, não acabará sendo “privatizado” pela elite rica em um país como esse. Mas, se não podemos contar nem com o estado nem com a autodefesa individual, então quer dizer que estamos condenados a viver à mercê de bandidos, com farda ou sem? Não, porque existe outra alternativa, aliás, a única viável: a segurança coletiva feita pela própria população organizada e armada. Em diversos momentos da história, em épocas de revolução e enfraquecimento do estado, foram feitas experiências de milícias e outras formas de autodefesa do povo em armas. Cada “cidadão” tinha o direito e o dever de prestar serviço na milícia portando armas da coletividade. Em geral, antes das contra-revoluções acabarem com essas experiências, as milícias revelaram-se extremamente eficazes no controle da criminalidade, principalmente por contar com uma rede de “informação” (a quase totalidade do povo) que nenhuma estrutura policial profissionalizada pode igualar. Produção de armas retirada do controle das empresas privadas e controlada pela coletividade organizada. Proibição de qualquer indivíduo poder possuir uma arma (todas armas passam a ser da coletividade). Extinção da polícia e de qualquer corpo armado profissionalizado separado da sociedade. Serviço obrigatório nas milícias (equipadas com armas da coletividade) de toda mulher e todo homem em idade produtiva e com saúde suficiente. Esses, em linhas gerais, são os passos necessários para o único “desarmamento” possível e viável. Utópico! Exclamarão os crentes no poder do estado. O povo não está organizado e educado para isso! Outros, “à esquerda”, dirão: a classe dominante nunca vai deixar, querer implantar esse programa nos levará à guerra civil... Bem, disse que apresentaria a única alternativa viável, não disse que ela seria fácil. Implantar um regime de segurança e paz coletivas através da autodefesa da população sem dúvida exigirá um movimento social como nunca se viu no Brasil, uma mobilização popular imensa, um grandioso processo de educação através da luta, o ataque resoluto contra privilégios e preconceitos seculares. Como disse, isso nos leva diretamente à luta pela libertação do povo até hoje escravizado e pisoteado pela minoria exploradora, genocida e racista. A única questão é: quem tem a perder com isso? * * * * Alguém obcecado pela institucionalidade que tenha lido o texto até aqui, mas que não entendeu nada do que eu escrevi, deve estar a esta altura muito irritado e perguntando: afinal, no que esse cara vai votar no dia do referendo? Ele defende que votemos SIM ou NÃO? Paciente, explico: não é o mais importante, mas no dia do referendo vou fazer o que tenho feito em todos os processos eleitorais oficiais há quase quinze anos – vou me abster. A abstenção eleitoral, quando você atua e luta de fato nos movimentos sociais, nunca é passividade, é uma forma clara de dizer: nenhuma das opções que o sistema “democrático” oficial me oferece é viável e conseqüente; continuarei lutando, pois esta é a única forma de buscar uma verdadeira solução. A propósito, me ocorre uma proposta do que fazermos aqui no Rio no dia do referendo, e a ofereço principalmente às companheiras e aos companheiros da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência: vamos às filas de votação passar o abaixo assinado contra o “caveirão”, o infame blindado terrorista da polícia. Estaremos fazendo muito mais pelo “desarmamento” e pela “segurança” que digitando 1 ou 2.

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