Licença para se calar

Concessão de habeas corpus a investigados pelas CPI detonou crise entre os poderes. Mesmo pego na mentira, depoente não vai preso


Por Ricardo Ramos

“Se fosse por mim, ele já estaria algemado”, disparou o senador Magno Malta (PL-ES) contra o economista Vladimir Poleto, que, em depoimento à CPI dos Bingos no dia 10 de novembro, foi pego na mentira. Secretário municipal em Ribeirão Preto (SP) durante a gestão de Antonio Palocci, Poleto se enrolou: depois de negar ter declarado à revista Veja que teria transportado caixas de bebidas, supostamente recheadas de dólares remetidos por Cuba, o economista foi surpreendido pela divulgação da gravação da própria entrevista.

Traído pelas próprias palavras, Poleto só não saiu preso da comissão porque, antes de depor, conseguiu um salvo conduto do Supremo Tribunal Federal (STF), que lhe garantiu o direito de mentir ou de não responder a perguntas que pudessem incriminá-lo. Recorrer ao STF para pedir habeas corpus virou rotina entre os depoentes das CPIs. Desde o início da crise, os ministros do Supremo já atenderam, total ou parcialmente, a 12 dos 17 pedidos feitos pelos investigados. Um deles ainda não foi julgado, o restante foi negado. Entre os concedidos, dez foram deferidos preventivamente, ou seja, antes dos depoimentos.

A generosidade do Supremo com os envolvidos nos escândalos que abalam a república tem gerado atrito entre o Legislativo e o Executivo. “O habeas corpus concedido pelo STF desmoralizou totalmente os trabalhos das CPIs. Ele (Poleto) mentiu descaradamente, foi flagrado mentindo. (Ele) sair daqui impune hoje reforça a frustração do Congresso e da sociedade”, reagiu Malta ao depoimento do ex-assessor de Palocci.

Como a CPI estava impedida de dar ordem de prisão ao economista, o senador apresentou um requerimento para que a Polícia Federal o indicie por crime de perjúrio (falso testemunho). O caso Poleto foi o primeiro, desde o início da crise política, em junho, no qual um habeas corpus livrou um depoente da prisão.

Há meses, parlamentares da base do governo e da oposição têm alertado sobre os riscos da concessão do habeas corpus, que os juristas também chamam de salvo conduto. “O Brasil não aceita esse tipo de artifício jurídico de chegar aqui e não querer oferecer respostas”, criticou o deputado Maurício Rands (PT-PE) antes de o STF conceder habeas corpus para o empresário Marcos Valério depor à CPI dos Correios, em julho. “Nós aqui da CPI, os 32 membros, queremos ouvi-lo, como queremos ouvir os demais convocados”, ponderou Rands.

“Ele (Valério) vai estar confessando que tem procedência tudo aquilo que hoje é suspeita. Eu imagino que ele não vai ter essa atitude irresponsável e vai colaborar com os trabalhos da CPI”, afirmou o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (PFL-BA), também sobre o empresário mineiro acusado de ser o operador do mensalão.

Antes do depoimento do ex-tesoureiro petista Delúbio Soares à comissão, o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP), atual presidente nacional do partido, pediu o fim dos habeas corpus preventivo em CPIs. “O ex-tesoureiro adota uma estratégia jurídica desvinculada da estratégia política do partido. É de responsabilidade deles (Delúbio e Silvio Pereira, ex-secretário geral do PT) a eventual falta de esclarecimento na CPI”, afirmou. “Entendemos que não há razão nenhuma para adiar as investigações ou adotar procedimentos que obstruam a apuração dos fatos.”

Berzoini chegou a dizer que o fim do instrumento jurídico poderia “ampliar a capacidade de investigação” da comissão. Também antes do depoimento de Delúbio, o senador Jefferson Peres (PDT-AM) considerou “perda de tempo” a CPI ouvir pessoas protegidas por habeas corpus. “A CPI deveria concentrar-se na análise dos documentos e nas acareações, que podem ser muito reveladoras”, avaliou o senador. Recentemente, o deputado Onyx Lorenzoni (PFL-RS) chegou a ressaltar a “coragem” da ex-presidente da Brasil Telecom Carla Cicco, que depôs sem a proteção do instrumento jurídico.

Traque

Esses depoimentos potencialmente explosivos às CPIs frustraram as expectativas, por causa do silêncio imposto pelo habeas corpus. Mas, com quatro meses de investigações, a versão dos empréstimos construída pela dupla começou a ruir. E, por essa razão, Valério, Delúbio e pelo menos outras 50 pessoas serão alvo de pedido de indiciamento da CPI dos Correios.

“O habeas corpus dá direito de o depoente não se auto-incriminar”, afirma Inocêncio Coelho, professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília (UnB), ao ressaltar o salvo conduto, seja concedido preventivamente ou depois de uma sessão da CPI, é um direito assegurado na constituição. “O que não significa o direito de mentir”, salienta.

Segundo Coelho, nem mesmo em um tribunal um acusado é obrigado a falar. Mas ele considera que o silêncio do acusado – assim como do depoente de posse de um salvo conduto – pode se voltar contra ele.

“Causa um pouco de espanto na sociedade (a concessão dos habeas corpus), mas a CPI tem características e poderes semelhantes às de um tribunal”, lembra o também professor da UnB Pedro Paulo Castelo Branco, da área de Direito Penal. Segundo ele, em qualquer interrogatório policial, os investigados podem permanecer calados. O mesmo ocorre na Justiça, embora o silêncio possa vir a incriminá-los. Em ambos os casos, o ônus da prova cabe ao Ministério Público, na hora de oferecer a denúncia.

Caso Chico Lopes

Sem saber disso e orientado pelos seus advogados, o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes saiu preso em abril de 1999, durante uma reunião da CPI do Sistema Financeiro. Chico Lopes, como era conhecido, recusou-se a assinar o termo de compromisso de falar a verdade, após as reiteradas tentativas feitas pelo presidente da comissão, o então senador Bello Parga (PMDB-PA).

“Dada a minha situação, não me sinto na condição de me apresentar como testemunha, pois estou sendo acusado e indiciado”, afirmou o ex-presidente do BC. Após a declaração, agentes da Polícia Federal o levaram para a sede da instituição em Brasília. No mesmo dia, os advogados de Lopes conseguiram tirá-lo da carceragem da PF, após terem entrado com um habeas corpus no Supremo. Preso por cinco horas, Lopes foi liberado após pagar uma fiança de R$ 300.

No ano passado, outro personagem público acabou preso por excesso de confiança no salvo-conduto. Em maio de 2004, na CPI do Banestado, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta também foi levado para a PF em Brasília. Pitta, que depôs amparado num habeas corpus preventivo, desacatou o presidente da comissão, o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT).

Depois que o ex-prefeito paulista se negou a responder às perguntas feitas a ele, Antero o cutucou: “Se eu lhe perguntasse se o senhor é corrupto, o senhor permaneceria em silêncio?”. Ao que Pitta rebateu: “E se eu indagasse a Vossa Senhoria se continua batendo em sua mulher, o senhor responderia?”. A provocação exaltou o tucano, que, após dizer que não batia em mulher nem assaltava os cofres públicos, deu voz de prisão ao ex-prefeito.

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