As invasões de fazendas e o direito de propriedade

por AUGUSTO RIBEIRO GARCIA*

A atual onda de invasões de terras em todo o Brasil leva a algumas reflexões que merecem uma análise mais detalhada. A questão é delicada e passa pelo crivo do direito de propriedade. Para o cidadão comum, essas invasões representam uma agressão e a violação de um direito. E realmente o são. Todavia, é preciso analisar por que elas acontecem e como evitar que elas aconteçam.

Juridicamente, essa questão tem um duplo enfoque. No Brasil, direito de propriedade é garantido pela Constituição Federal, que é a lei maior do País. O inciso XXII de seu art. 5º diz textualmente que é garantido o direito de propriedade. Já o inciso seguinte (XXIII) diz que a propriedade atenderá a sua função social.

Toda a polêmica em torno da propriedade territorial rural no Brasil passa pelo crivo desses dois dispositivos. No setor rural, essa questão é mais acirrada. Isto porque a cultura do povo brasileiro, em termos de propriedade, foi influenciada pelo Código Civil de 1916, que vigorou até o dia 10 de janeiro deste ano. Quando o velho Código foi aprovado, o Brasil ainda era uma sociedade agrária. O direito de propriedade nele inserido seguiu a orientação filosófica de Santo Tomás de Aquino, para quem esse direito era sagrado e absoluto. Essa orientação, porém, foi aos poucos sendo mudada nas constituições promulgadas na segunda metade do século passado. E também por influência da igreja católica, por meio das encíclicas papais. Foi nessa linha de entendimento que a função social acabou sendo inserida na legislação ordinária do País. A principal lei que acolheu o princípio da função social foi o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64). Por fim, ela se consolidou definitivamente na Constituição de 1988.

O cumprimento da função social da propriedade rural está previsto no artigo 184 da Constituição. Tudo o que envolve a propriedade rural, em termos de direito de propriedade, está ali sintetizado. Vale a pena transcrevê-lo para dimensionar o seu conteúdo.
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I- aproveitamento racional e adequado;
II- utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III- observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV- exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

A leitura atenta desse dispositivo dá bem para fazer uma comparação do que está escrito no papel e o que está acontecendo na prática por aí.

Quando uma fazenda é invadida por algum movimento social, o argumento de seus integrantes é o de que a propriedade é improdutiva. Mas, além do dispositivo constitucional, ainda existem outros desdobramentos da lei ordinária. Os principais deles são os índices de produtividade e graus de utilização da terra. Eles são fixados pelo Incra de acordo com os dados cadastrais fornecidos pelo proprietário e com os parâmetros estabelecidos pela Lei nº 9.393/96 (Lei do ITR).

Quem constata se a propriedade é produtiva ou não é o Incra, mediante uma vistoria técnica. E quando isso ocorre, o órgão emite um laudo, que pode ser impugnado pelo proprietário, se não concordar com ele. Só que essa vistoria tem que ser precedida de uma notificação enviada pelo Incra ao proprietário do imóvel. Ela contém um rol de requisitos que englobam os do art. 186 da Constituição e mais os das leis ordinárias.. Caso a vistoria seja destinada a uma eventual desapropriação para fins de reforma agrária, se o proprietário não for notificado com antecedência o decreto desapropriatório pode ser anulado judicialmente.

Portanto, para que a propriedade rural cumpra integralmente a sua função social, é importante que seu proprietário observe à risca os seus requisitos. Assim, ela será considerada produtiva e, como tal, é insuscetível de desapropriação. É o que dispõe o artigo 185, II, da Constituição.

*AUGUSTO RIBEIRO GARCIA é jornalista e advogado agrarista.

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