O Beleza Preta

Chamava-se Anastácio Miranda e era um grande jogador de futebol. Atacante de ofício, de uma velocidade impressionante e um chute muito forte, com os dois pés; tanto era bom na arte de fazer gols, que o Renner, clube de futebol de Porto Alegre-RS, ao fazer uma excursão a Belém, no início da década de 50, o viu treinando no Clube do Remo e de imediato o contratou. Bem, deixemos Beleza em Porto Alegre, e vamos conhecer o seu perfil, incluindo-se a origem do seu apelido. Abrir parêntese: ele nunca trabalhou com carteira assinada; seu trabalho constava em vender cortes de linho irlandês de casa em casa. Como era muito conhecido na cidade, sempre fazia bons negócios. Tinha um certo traquejo; vestia-se bem; sapatos preto e branco, uma certa malandragem, no bom sentido; e assim, como todo bom malandro, não abria mão de falar outro idioma, no caso o espanhol, cujo idioma era, invariavelmente, empregado nas suas vendas.

Pouco antes disso, quando ainda adolescente, ele namorava uma empregada doméstica de um rico comerciante da cidade, que possuía dois cães, pastores alemães, de cuja ferocidade ninguém nunca duvidou, pois qualquer pessoa que chegasse próximo às grades do alto muro que circundava a casa, era logo de lá corrido pela recepção nada amistosa das duas feras. Mas para o Anastácio isto não era problema. Começou a falar em espanhol com os cães. Chegava a uma certa distância do muro e logo lascava: “Perros, yo soy el Beleza Preta, me acerco de usted, pero non para hacerle males. Soy muy amigo de usted”. E tanto repetiu o refrão, que segundo ele mesmo contou, os cães logo se afeiçoaram a ele, e assim pôde namorar à vontade. Fechar parêntese.
Bem, após quase um ano em Porto Alegre, eis que o Beleza Preta volta a Santarém, pois segundo ele, não se acostumara ao frio gaúcho. Continuou com as suas vendas, mas aos domingos eram os dias em que fazia a sua festa particular. No campo, era impossível detê-lo quando ele iniciava a corrida rumo à meta adversária. Era o meia-direita (assim chamado na época) lançar para a corrida do Beleza e o menino do placar já ia mudando o número dos gols antes marcados. Era assim o placar eletrônico da época.

Nas segundas-feiras, por hábito, não trabalhava; eram os dias reservados para receber os cumprimentos, os tapinhas nas costas, os apertos de mãos dos seus fãs. Nos demais dias, eis o Anastácio Miranda com as suas vendas que era o seu meio de vida. Mas, como diz o ditado, “Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe”, Anastácio viu que na sua cidade seus negócios iam diminuindo de mês a mês. Naquela altura, já havia outros vendedores lhe fazendo concorrência, ora nos preços, ora nos prazos de pagamento, e assim urgia que ele tomasse providências senão de que viveria? Fez uma pesquisa de “marketing”, (pois com ele era assim mesmo!), e constatou que em cidades como Monte Alegre, Oriximiná, Óbidos, Alenquer, ou a vila de Belterra, que não ficavam tão distantes e, eram menos exploradas, certamente lá colocaria os seus produtos.

Como era conhecido, ou melhor, conhecidíssimo em quaisquer dessas cidades, em especial pelas lides futebolísticas, escolheu a cidade de Alenquer para uma primeira experiência fora da sua sede, e partiu numa terça feira à noite, chegando ao amanhecer; e como seria de esperar, não tardou a entabular bons negócios, tão bons que resolveu ficar mais um dia, dado à receptividade que ali encontrara.

Na manhã seguinte, lá pelas nove horas, bateu na porta de uma casa e veio uma garotinha de mais ou menos seis anos de idade. E o Anastácio Miranda de imediato lascou o seu portunhol: “Niña, lhame su madre que yo quiero hablar com ella”. A menina, surpresa, olhou o interlocutor uma vez, duas vezes e dali mesmo gritou para sua mãe que estava no fundo do quintal: “Mãe, vem aqui depressa porque o Beleza Preta tá falando uma língua que ninguém entende”.


*Estemir Vilhena da Silva É professor e escritor. Vai publicar em breve o livro “Roteiros de uma vida”.

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